Para quem não sabe, foi no edifício Santa Virgília, av. S. Luis 43, que Caetano foi preso em 1968.
Marcos Augusto Gonçalves
Boulevard Tropicália
Caetano Veloso, que morou na São Luís nos tempos tropicalistas, diz que deve canções a São Paulo
"Sinto que a minha dívida para com a cidade de São Paulo ainda não foi
paga em canções." A declaração de Caetano Veloso veio num e-mail,
enviado da Bahia, pouco depois da meia-noite de quarta-feira passada. Na
véspera, ele havia comemorado seus 70 anos, no Rio, numa festa "bem
pequena e bem feliz", mas que avançou pela madrugada. "Estou cansado de
ontem", disse, em resposta a minha mensagem de parabéns, na qual
aproveitava para pedir que falasse alguma coisa sobre a cidade, onde
passou momentos cruciais de sua vida.
Em 1968, ele e Dedé, pouco depois de terem se casado, foram morar num
apartamento alugado, no 20º andar do edifício Santa Virgília, o número
43 da São Luís, no centro.
No século 19, a avenida não era mais do que o Beco Comprido, que cortava
a chácara do brigadeiro Luiz Antônio, rico comerciante e militar
luso-brasileiro. Após sua morte, a área foi dividida e ocupada por
palacetes de clãs endinheirados, como os Penteado e os Junqueira.
Posteriormente, tornou-se um boulevard elegante, com comércio e
edifícios de apartamentos.
No início dos anos 1960, inaugurou-se na avenida a galeria Metrópole,
anunciada como "a maior concentração de lojas da América Latina". Foi um
point de gente fina, intelectuais, artistas e boêmios.
Apesar da relativa decadência da região, a São Luís continua a ser um
dos pedaços mais bacanas da cidade -e ganha lugares, como o
recém-inaugurado restaurante Ramona.
Na época de Caetano, tempos de tropicalismo, revolução comportamental,
ditadura e protestos estudantis, o poeta Augusto de Campos trabalhava a
50 metros do Santa Virgília, no número 99. O concretista, que se tornara
procurador do Estado em 1962, por concurso público, era funcionário da
assessoria técnico-legislativa da Secretaria da Saúde, que ali
funcionava.
Augusto recorda-se que do outro lado, no edifício Itália, "ficava a
Livraria Sal, então dirigida por Jorge da Cunha Lima". Lá, conta ele,
"com a presença de todos os tropicalistas", foi lançado em agosto de
1968 seu livro "O Balanço da Bossa". A obra inaugurava, com outros dois
títulos, a coleção Debates da editora Perspectiva.
"São Paulo foi essencial para o tropicalismo. Para minha vida também",
diz Caetano, que foi preso pelo regime militar quando morava na avenida.
"Nasci e cresci num Brasil carioca. Acolher São Paulo, uma força tão
grande que fazia, sozinha, contrapeso a tudo o que esse primeiro Brasil
significava, não podia ser fácil. Conheço gaúchos, piauienses, capixabas
e, claro, muitos cariocas para quem isso ainda é duro. Para mim, foi
uma iluminação", diz ele, que considera "Sampa" uma narração emocionada
dessa passagem.
Parece estranho o autor desse hino declarar-se devedor de canções sobre
São Paulo, mas a verdade é que Caetano sente-se mesmo assim.
Quem com certeza não vai ouvir essas possíveis novas composições é a
pessoa que atualmente mora no apartamento. "Desculpe, mas não quero
falar sobre esse assunto", disse-me ao interfone. "Além do mais, eu não
gosto de música popular."
da Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/60529-boulevard-tropicalia.shtml